Criado pela jornalista Patrícia Almeida, mãe de uma garota com Down, material pode ser usado por crianças com ou sem deficiência
Ana Luiza Moraes
Se crianças e adolescentes já são naturalmente vítimas prediletas de molestadores, o risco é três vezes maior para aqueles com algum tipo de deficiência, conforme revela relatório da Unicef. Não é muito difícil descobrir as razões dessa preferência. A fragilidade acarretada por fatores como imaturidade, insegurança e dependência é agravada pela vulnerabilidade imposta por limites físicos ou mentais.
Mãe de uma jovem com síndrome de Down e mestre em estudos da deficiência pela Universidade da Cidade de Nova York, a jornalista Patricia Almeida decidiu criar o projeto “Eu me Protejo”, uma cartilha que ensina crianças com ou sem deficiência a reconhecer situações suspeitas e desconfiar do abuso travestido de carinho e afeto.
Com linguagem simples e direta, a cartilha enumera atitudes suspeitas e dá dicas de como reagir e a quem pedir ajuda. Para a autora, trabalhar a autoestima das crianças com deficiência é uma medida de proteção importante para estimular o relato de possíveis abusos.
“Elas são muito desacreditadas. Um dos motivos é que existe a ideia de que ninguém teria interesse em se relacionar com uma pessoa com deficiência”, afirma Patrícia.
Foi o que ocorreu com V.L., 45, que tem uma deficiência congênita nos pés que a fez depender de muletas durante toda a infância e se submeter a sete cirurgias para tentar corrigir o problema.
V. L. tinha nove anos quando o pastor da igreja evangélica que a mãe frequentava, de confiança da família, pediu consentimento para que ela o ajudasse após os cultos.
O religioso comprava salgadinhos e doces para a menina enquanto ela estava na igreja. “Minha família era muito pobre, ninguém tinha dinheiro para nada, não tínhamos condições de comer essas coisas”, conta.
Atento ao seu problema físico, o pastor sempre mandava que ela se sentasse. Uns dois meses depois, passou a pedir que ela se sentasse no colo dele. Assim começaram os abusos, que duraram cerca de um ano, até que os estudos a fizeram deixar de ajudar na igreja. Não chegou a haver penetração, o pastor manipulava os órgãos sexuais dele e dela.
Na adolescência, quando começou a entender o que era abuso, V.L. decidiu contar para a irmã três anos mais velha, que não acreditou. “Ela disse que eu tinha entendido errado, o pastor era um homem bom, casado, não iria abusar de uma menina como eu [com deficiência e então considerada feia].” Depois disso, não contou para mais ninguém.
No caso de crianças com deficiência intelectual, há um descrédito ainda maior sobre o que relatam. “Elas podem ter habilidades comprometidas, algum déficit cognitivo, mas têm capacidade para relatar sua história, informar o que está acontecendo”, afirma Luciana Stocco, assistente social e supervisora do Serviço Jurídico Social do Instituto Jô Clemente (antiga Apae, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo).
Com base em sua experiência no instituto, Luciana afirma que a questão socioeconômica tem grande relevância nos casos de exploração sexual: “A dependência muitas vezes faz a família camuflar a situação porque precisa do dinheiro do agressor”.
A questão financeira também está relacionada ao estresse do cuidador principal, que, na maioria dos casos, é a mãe. “O esgotamento do cuidador é um fator importante na ocorrência de violência. É necessário haver uma atuação intersetorial para definir políticas públicas mais eficazes e mais protetivas”, diz.
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V.L. até hoje mora com a mãe na mesma cidade do interior paulista em que nasceu. Não se casou, nem teve filhos. Nunca conseguiu namorar e diz que até hoje tem pavor que cheguem perto dela. O pastor já morreu há muitos anos, mas ela diz que as lembranças ainda são sufocantes. “Sei que preciso de ajuda, já cheguei a marcar com a psicóloga várias vezes, mas sempre desmarco. Sinto muita vergonha de contar o que aconteceu comigo.”
A cartilha de Patricia Almeida está disponível gratuitamente no endereço eumeprotejo.com e pode ser baixada para uso no computador ou celular. Para os que preferirem imprimir, há a opção da versão de bolso, mais econômica. O site também oferece a obra em formato de videolivro, audiodescrição, Libras e videolivro em Libras, além de versões em espanhol e inglês.
Imagens da cartilha:
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